Quantas circunstâncias
poderíamos descrever em que o ódio se faz confundido com a razão ? Em que as
palavras não descrevem argumentos, mas sim uma simbiose de indiferença, emoção
e preconceito. São muitas. Acredito que todos nós já vivemos ao menos uma
destas possíveis circunstâncias. Porém, como possamos tentar entender essa
prática cada vez mais presente no nosso cotidiano ?
Existe um mito da
antiguidade que pode nos ajudar. Trata-se de Cérbero, o demônio em forma de cão
raivoso de ao menos três cabeças que guardava o Inferno. Permitia a entrava,
mas proibia a saída das almas. Dante de Alighieri, o encontrou no terceiro círculo
do Inferno. Lá fazia uma eterna chuva gélida e pesada que em um monótono ritmo
precipitava. As almas eram mordidas pelas presas raivosas de Cérbero e que ao
latir faziam com que desejassem ser surdas. Ciacco, uma destas almas, falou arrependido
para Dante: “volta à tua velha conhecença na qual se ensina que o ser mais
perfeito mais sente seja o bem e seja a ofensa.”
O mito de Cérbero nos
identifica que o inferno do ódio deixa nos entrar, mas dificilmente estando
dentro se pode sair. Em todos os que no terceiro círculo do Inferno foram parar,
a chuva gélida os fazia na própria pele não esquecerem que o seu erro foi de
terem sido frios com outros. Cérbero os mordem, dia após dia, por toda a
eternidade. Lembram assim que não compreender as suas próprias emoções os levou
a serem raivosos tal como um cão demoníaco. O latido escurecedor de Cérbero é a
condenação pelo preconceito que tiveram para os outros. Em vida, somente o que faziam
eram gritar como se a razão fosse medida pelo tom da altura das palavras. Aprendem
assim que ódio silencia o outro não pela força do argumento, mas pelo argumento
da força.
O que Ciacco nos representa
é o arrependimento de também ter sido assim: guloso ao ponto de querer engolir
a razão do outro. Para toda a sua eternidade saberá que o ser humano na
filosofia de sua vida não pode deixar se levar pelo ódio, pois quanto mais
consciente mais percebe o bem e a ofensa. O ódio somente nos leva a ofensa,
pois não há razão. Não há razão em sermos emotivamente indiferentes com base em
preconceitos.
De todas as possíveis circunstâncias
do ódio, a que mais me indigna é a da política. Neste atual projeto da modernidade neoliberal e
ultraconservador em que vivemos, na política, o ser é levado a se crer como um
individualista extremado. Por mais que a prática lhe demonstre, ainda sim se
imagina mais esperto pensando três vezes sobre a mesma coisa do que dialogando
com duas pessoas diferentes sobre a mesma coisa. As inúmeras cabeças de Cérbero
não fizeram do cão um ser mais inteligente, pelo contrário, são a própria
representação da contradição tresloucada de desejar ir a três lugares
diferentes ao mesmo tempo.
Tal como Cérbero, os
políticos adeptos desta modernização do mito do ódio como razão desejam que
entremos no seu inferno. Fazem política mostrando presas raivosas e nos
forçando a desejar a surdez.
O ódio faz esse político querer
ter a razão levado pela emoção. Se demonstrar com a razão mesmo se baseando em
presunções preconceituosas que fogem da teoria ou da prática. Em querer impor
ao outro a sua razão pela indiferença da razão do outro.
É essa a simbiose que
pode explicar, a modernização do mito de Cérbero pela figura do político do Deputado
Bolsonaro. Esse se afirma como um cristão que defende a tortura. O ódio o faz
esquecer do amor ao próximo e deseja violenta-lo, como as mordidas de Cérbero. Se
diz eleito pelo povo e defende a ditadura. O ódio o faz desconhecer a sua
própria circunstância, lhe tornando cão de guarda de um inferno, tal como
Cérbero. Que se diz parlamentar sem nenhuma lei aprovar. O ódio não o permite
agir ao bem do coletivo, o que faz é gritar como os latidos de Cérbero. É essa a
própria representação brasileira da modernização da confusão do ódio com a
razão na política.
Bruno
Boaventura.
Advogado. Especialista em
Direito Público. Mestre em Política Social pela UFMT.
www.bboaventura.blogspot.com
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