terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O debate inicial entre o Impunível e o Inapoderável. Ato 3.

Prólogo: o Inapoderável sobe ao palco, de frente ao Impunível lhe encara como o seu olhar pudesse por si só transmitir a força da verdade de suas palavras.
- Impunível, agora, sabes quem sou eu, mas haverá ainda de saber o que te fiz e o que ainda te farei. À ti não tenho o mínimo respeito. Em cima de mim, lhe verei sempre como um bom alvo para acertar uma pedra. Ao meu lado, olho aos que chamo de companheiros, estes lhes ombrearei até a morte, pois juntos nos libertamos da opressão, a qual você não passa de uma representação.
Apesar do tom firme, em nada a segurança do Impunível foi abalada. A maneira de gesticular e de olhar permaneciam as de sempre, baseada em uma sobre-humana firmeza que passava a impressão da presença de uma falsa máquina espiritualizada:
- Inapoderável, não lhes parece tolice ? Não percebes, o quanto mais luta, mais fácil as cordas lhe enrolam. Essa sua luta não passa de um nada: ideal sem pragmatismo, sujeito sem riqueza, político sem cargo, religião sem sacerdote, multidão sem líder, vida sem civilidade, tempo sem relógio. Enfim, se torna um lugar vazio à mesa, em quem a ausência pouco importa.
- Impunível, a sua decadência ainda não lhe fez a consciência ? A mesa está desfeita, a festa acabou ! Nada mais lhe resta, senão a prisão.
Súbito como um golpe bem no meio do coração, a reação a que toma o Impunível lhe desassossega, aquela palavra na verdade faliu a sua alma na mais raivosa das emoções.
- Risível, como soa patético o seu sonho aos meus ouvidos. Insurgente, já perdestes a memória, eu sou o Impunível ! À mim a liberdade é  absoluta, sem controle, sem freio, sem peso na consciência pela punição. Minhas ações equivalem-se a dentes afiados de uma grande engrenagem secular imparável, em que os obstáculos sejam de que natureza for são reduzidos a pó. Meus pensamentos são a própria força motriz do sistema. Nada pode ser contra a perpetuidade do que eu simbolizo. Na guerra do poder: eu sou a paz, eu vendo a paz !
O Inapoderável cai ao chão de joelho, abaixa a cabeça, e sussurra como em uma oração individual.
- Eis então que deva saber que minha guerra não é pelo poder. Não quero me sentar a sua mesa, a tua comida não me dá o prazer de sequer sentir o sabor, muito menos de aplacar a fome, pois sei que ela não frutificou do trabalho, mas sim do veneno que pelo egoísmo muito mais mata do que traz vida.
Já em pé, o Inapoderável com os braços erguidos, grita ao Sol que passou a iluminar o contexto:
- Aos meus próximos, aos que no tempo marcaram a história com o seu sangue. Aos índios pelo vermelho dos rios, aos negros pelo vermelho do chão da senzala, aos trabalhadores pelo vermelho de sofridão dos olhos de seus filhos, aqueles que a modernidade lhes tomou a condição humana; Eu proclamo: Impunível há em ti uma utilidade que se esgota na naturalidade da sua existência: servir aos seus Senhores, não lhe faz Senhor. Você nunca foi Criador, nada mais é do que uma mera criatura. O que fiz ao tirar pequenas pedras do caminho da sua finitude era tornar um pouco mais rápido aquilo que era inevitável. Ainda não é por projeto ou ideal, era o simples exercício da pequena parte que me cabe no grande alcance do poder da minha responsabilidade, e é o que torna possível a sua pena.
Neste momento, o Impunível escuta sons dos passos de uma grande passeata em gritos convergentes, que com a proximidade mais audível lhe assusta cada vez mais a razão.
Obs.: O ato 3 é precedido do ato 1 – O Impunível, e do ato 2 – O Inapoderável. Continuará em um futuro não tão distante.

Bruno Boaventura – Advogado. Mestre em Política Social pela UFMT.