Prólogo: o Inapoderável sobe ao palco, de frente ao Impunível
lhe encara como o seu olhar pudesse por si só transmitir a força da verdade de
suas palavras.
- Impunível, agora, sabes quem sou eu,
mas haverá ainda de saber o que te fiz e o que ainda te farei. À ti não tenho o
mínimo respeito. Em cima de mim, lhe verei sempre como um bom alvo para acertar
uma pedra. Ao meu lado, olho aos que chamo de companheiros, estes lhes ombrearei
até a morte, pois juntos nos libertamos da opressão, a qual você não passa de
uma representação.
Apesar do tom firme, em nada a segurança do Impunível foi
abalada. A maneira de gesticular e de olhar permaneciam as de sempre, baseada
em uma sobre-humana firmeza que passava a impressão da presença de
uma falsa máquina espiritualizada:
- Inapoderável, não lhes parece
tolice ? Não percebes, o quanto mais luta, mais fácil as cordas lhe enrolam. Essa
sua luta não passa de um nada: ideal sem pragmatismo, sujeito sem riqueza, político
sem cargo, religião sem sacerdote, multidão sem líder, vida sem civilidade,
tempo sem relógio. Enfim, se torna um lugar vazio à mesa, em quem a ausência
pouco importa.
- Impunível, a sua decadência ainda
não lhe fez a consciência ? A mesa está desfeita, a festa acabou ! Nada mais
lhe resta, senão a prisão.
Súbito como um golpe bem no meio do coração, a reação a que
toma o Impunível lhe desassossega, aquela palavra na verdade faliu a sua alma
na mais raivosa das emoções.
- Risível, como soa patético o seu
sonho aos meus ouvidos. Insurgente, já perdestes a memória, eu sou o Impunível
! À mim a liberdade é absoluta, sem
controle, sem freio, sem peso na consciência pela punição. Minhas ações
equivalem-se a dentes afiados de uma grande engrenagem secular imparável, em
que os obstáculos sejam de que natureza for são reduzidos a pó. Meus
pensamentos são a própria força motriz do sistema. Nada pode ser contra a
perpetuidade do que eu simbolizo. Na guerra do poder: eu sou a paz, eu vendo a
paz !
O Inapoderável cai ao chão de joelho, abaixa a cabeça, e sussurra
como em uma oração individual.
- Eis então que deva saber que minha
guerra não é pelo poder. Não quero me sentar a sua mesa, a tua comida não me dá
o prazer de sequer sentir o sabor, muito menos de aplacar a fome, pois sei que
ela não frutificou do trabalho, mas sim do veneno que pelo egoísmo muito mais mata
do que traz vida.
Já em pé, o Inapoderável com os braços erguidos, grita ao Sol
que passou a iluminar o contexto:
- Aos meus próximos, aos que no tempo
marcaram a história com o seu sangue. Aos índios pelo vermelho dos rios, aos
negros pelo vermelho do chão da senzala, aos trabalhadores pelo vermelho de
sofridão dos olhos de seus filhos, aqueles que a modernidade lhes tomou a
condição humana; Eu proclamo: Impunível há em ti uma utilidade que se esgota na
naturalidade da sua existência: servir aos seus Senhores, não lhe faz Senhor.
Você nunca foi Criador, nada mais é do que uma mera criatura. O que fiz ao
tirar pequenas pedras do caminho da sua finitude era tornar um pouco mais rápido
aquilo que era inevitável. Ainda não é por projeto ou ideal, era o simples
exercício da pequena parte que me cabe no grande alcance do poder da minha
responsabilidade, e é o que torna possível a sua pena.
Neste momento, o Impunível escuta sons dos passos de uma
grande passeata em gritos convergentes, que com a proximidade mais audível lhe
assusta cada vez mais a razão.
Obs.: O ato 3 é precedido do ato 1 – O Impunível, e do ato 2 –
O Inapoderável. Continuará em um futuro não tão distante.
Bruno Boaventura – Advogado. Mestre em Política
Social pela UFMT.