sábado, 11 de março de 2017

O mito de Cérbero e a modernização da confusão do ódio como razão.

Quantas circunstâncias poderíamos descrever em que o ódio se faz confundido com a razão ? Em que as palavras não descrevem argumentos, mas sim uma simbiose de indiferença, emoção e preconceito. São muitas. Acredito que todos nós já vivemos ao menos uma destas possíveis circunstâncias. Porém, como possamos tentar entender essa prática cada vez mais presente no nosso cotidiano ?

Existe um mito da antiguidade que pode nos ajudar. Trata-se de Cérbero, o demônio em forma de cão raivoso de ao menos três cabeças que guardava o Inferno. Permitia a entrava, mas proibia a saída das almas. Dante de Alighieri, o encontrou no terceiro círculo do Inferno. Lá fazia uma eterna chuva gélida e pesada que em um monótono ritmo precipitava. As almas eram mordidas pelas presas raivosas de Cérbero e que ao latir faziam com que desejassem ser surdas. Ciacco, uma destas almas, falou arrependido para Dante: “volta à tua velha conhecença na qual se ensina que o ser mais perfeito mais sente seja o bem e seja a ofensa.”

O mito de Cérbero nos identifica que o inferno do ódio deixa nos entrar, mas dificilmente estando dentro se pode sair. Em todos os que no terceiro círculo do Inferno foram parar, a chuva gélida os fazia na própria pele não esquecerem que o seu erro foi de terem sido frios com outros. Cérbero os mordem, dia após dia, por toda a eternidade. Lembram assim que não compreender as suas próprias emoções os levou a serem raivosos tal como um cão demoníaco. O latido escurecedor de Cérbero é a condenação pelo preconceito que tiveram para os outros. Em vida, somente o que faziam eram gritar como se a razão fosse medida pelo tom da altura das palavras. Aprendem assim que ódio silencia o outro não pela força do argumento, mas pelo argumento da força.

O que Ciacco nos representa é o arrependimento de também ter sido assim: guloso ao ponto de querer engolir a razão do outro. Para toda a sua eternidade saberá que o ser humano na filosofia de sua vida não pode deixar se levar pelo ódio, pois quanto mais consciente mais percebe o bem e a ofensa. O ódio somente nos leva a ofensa, pois não há razão. Não há razão em sermos emotivamente indiferentes com base em preconceitos.

De todas as possíveis circunstâncias do ódio, a que mais me indigna é a da política. Neste  atual projeto da modernidade neoliberal e ultraconservador em que vivemos, na política, o ser é levado a se crer como um individualista extremado. Por mais que a prática lhe demonstre, ainda sim se imagina mais esperto pensando três vezes sobre a mesma coisa do que dialogando com duas pessoas diferentes sobre a mesma coisa. As inúmeras cabeças de Cérbero não fizeram do cão um ser mais inteligente, pelo contrário, são a própria representação da contradição tresloucada de desejar ir a três lugares diferentes ao mesmo tempo. 

Tal como Cérbero, os políticos adeptos desta modernização do mito do ódio como razão desejam que entremos no seu inferno. Fazem política mostrando presas raivosas e nos forçando a desejar a surdez.

O ódio faz esse político querer ter a razão levado pela emoção. Se demonstrar com a razão mesmo se baseando em presunções preconceituosas que fogem da teoria ou da prática. Em querer impor ao outro a sua razão pela indiferença da razão do outro.

É essa a simbiose que pode explicar, a modernização do mito de Cérbero pela figura do político do Deputado Bolsonaro. Esse se afirma como um cristão que defende a tortura. O ódio o faz esquecer do amor ao próximo e deseja violenta-lo, como as mordidas de Cérbero. Se diz eleito pelo povo e defende a ditadura. O ódio o faz desconhecer a sua própria circunstância, lhe tornando cão de guarda de um inferno, tal como Cérbero. Que se diz parlamentar sem nenhuma lei aprovar. O ódio não o permite agir ao bem do coletivo, o que faz é gritar como os latidos de Cérbero. É essa a própria representação brasileira da modernização da confusão do ódio com a razão na política.

Bruno Boaventura.
Advogado. Especialista em Direito Público. Mestre em Política Social pela UFMT. www.bboaventura.blogspot.com